26.6.10







não gosto daquelas de casca grossa, com rodinhas, pegas à caniche e códigos vaidosos que por defeito marcam sempre seis seis seis. assim que saem da loja já cheiram a querosene, náusea, porão, pulsões de arrependimento, etiquetas verde-polícia, cefaleia, raio x, reuniões de negócios, pirataria, enriquecimento curricular, café em copo de papel, filas de espera, turbulência, sonos trocados, claustrofobia, pressão, compressão, descompressão, surdez, mais um momento, adiamento, cancelamento. gosto muito mais desta.

25.6.10















estás a desenhar-me? eu sei que estás. ele não sabe porque está de costas e aquele outro sabe mas gosta e põe-se a jeito porque acha que fica bem de perfil. eu sei que isso sou eu porque estou de frente para ti a ver como procuras a mistura certa para a cor do meu cabelo e o traço certo para a curva do meu nariz. nem sequer é assim. é mais pequeno. e não me ponhas com essa expressão que não estou zangada contigo. não me importo que o faças. só quero que o reconheças ou que o rasgues se não ficar bonito.

24.6.10







cabe-me desvendar-vos a identidade de um fruto injustamente subestimado. csipkebogyó. nome convenientemente húngaro para adensar a sua personalidade exótica. apresenta-se em cachos de baguinhas cor fucsia. de natureza silvestre, dá-se bem em matas desapropriadas nas periferias da infância. quanto ao sabor, descreve-lo-ia como semelhante a coisíssima nenhuma mas talvez a meia viagem entre a tarde em granada de debussy e o barco bêbado do rimbaud.

23.6.10





desde que me lembro que sou acometido por ligeiros delírios sinestésicos. lembro com saudade a primeira vez que ouvi a palavra lisboa e logo um forte sabor a bafio no palato. com o tempo fui percebendo que a certo tipo de personalidade correspondia uma dada cor. azul: o cartesiano déspota e demagogo. verde: o libertino desinformado, tocador ofegante de tambores. laranja: o intenso, romântico montanha-russa. vermelho: o idealista trave-mestra, acossado mas asseado. cada vez mais me aproximo da cor que sempre sonhei para mim: um distinto grisalho de bainhas por engomar.

22.6.10





ele entrou particularmente transtornado no café e projectou toda a sua irritação no empregado. acusou-o de feitos terríveis, fantasias mirabolantes de agressões, conspirações e consequências sendo uma boa metade delas entre aspas. esta última semana sempre que entrei para a bica encontrei um silêncio funéreo. parecia que já ninguém lembrava os benefícios da boa velha conversa de salão. até que este tipo decide projectar no outro tudo o que no seu interior menos tolerava. fiquei aliviado em perceber que o tempo das palavras ainda houvera acabado.

21.6.10









europa é uma boa desculpa. uma ideia ardilosa. é um boneco insuflável. europa é um produto de marca branca, baratinho à venda em qualquer supermercado. europa é coisa de gente tonta. europa é um fuso horário estúpido. a europa não tem cheiro. europa é coisa de escritores sem calo, jornalistas, juristas e turistas sexuais. é palavra limpinha e altamente metafórica. quando se diz europa está-se na verdade a querer dizer anonimato.

20.6.10






que estória tão mal contada. pura maldade. para começar no jardim do eden não havia cobras. algumas osgas e mosquitos sazonais e pouco mais. andava por lá uma senhora, de sua graça clementina, linguaruda e dona da mais fina mercearia. certo dia vendeu quilo e meio de pêros com bicho à dona eva, reformada de uma companhia de seguros semi-profissional. a coisa acabou em litígio e o resto da estória já nós conhecemos. após o incidente a dona clementina decidiu mudar o negócio para o bairro mais cosmopolita de budapeste onde é agora famosa pelos seus iogurtes siberianos de fabrico caseiro.

15.6.10









dona ximbica, matriarca goiana da cabeça aos pés, debruçou-se sobre a alcofa no meio da estação central em plena hora de ponta. melissa. leve essa menina que em preto pega menos sujeira. há uns anos atrás isso não vendia não. já vendi de tudo. bombom de chocolate com pedacinho de noz e geleias caseiras. depois já só vendia pequi a meio real o quilo que gulodice não paga imposto. acabei por largar porque a boca é coisa de modas e aquilo lá passou a ser negócio espinhoso.

12.6.10







tenho alguma dificuldade, ainda para mais com a coisa ainda a quente, em conseguir o recuo temporal suficiente para me poder pronunciar sobre a matéria. muito facilmente cometeria o erro invariante de produzir uma opinião obscenamente leviana. o pior que poderia fazer agora era uma patho-biografia. não me perdoaria pelo acto. contornando a questão. não. o tipo chama-se verde, é nitidamente um espião norte-americano infiltrado. representou às claras e de acordo com o estipulado. resta que deus safe a rainha.

11.6.10






hoje? a que horas? impossível. talvez mais tarde. vou ter de fazer uma máquina de roupa. é assim que se faz: separa-se a roupa por material e cor. detergente, amaciador. programa tecidos delicados, quarenta graus, centrifugação ligeiramente abaixo do ponto de hipnose. roda, lava, roda, espuma. roupa enxaguada, roupa centrifugada, roupa enrugada, torcida, espremida e sacudida e estendida. pronto. agora é com o sol. aquelas nuvens não prometem nada de bom. é melhor ficar vigilante a ver se chove e também o convite não era assim tão bom.

10.6.10











ontem passei uma noite terrível. vómitos, calafrios e delírios messiânicos. não preguei olho. algum engraçadinho decidiu servir-me milho roxo. foi ali na basílica da estrela a seguir à missa das onze. ainda não percebi o que mais os católicos invejam em mim. a monogamia voluntária, a visão periférica ou a isenção fiscal. é pura conflitualidade artificial. eu juro não tenho nada contra os católicos. até vos confesso que se tivesse joelhos e mais tempo livre aos fins de semana me juntava a eles.

8.6.10






não é improvável surpreendê-lo impassível neste oficio. o homem-ideia que vive de acordo com o seu próprio ideário penal. na sua obsessão heteronímica defende as próprias representações mentais como as de um aluno aplicado. frequenta sobretudo sítios de crítica de arte, fóruns de ciência política, jornais de inspiração social-democrata, lojas virtuais e boletins de especulação geofísica. afirma, peremptório, que se prepara para concluir o doutoramento que lhe permitirá figurar, a médio prazo, entre os mais promissores e competentes mentirosos do mundo.

6.6.10















nós que vivemos a três, eu, tu e o presente, nunca aqui estivemos ao mesmo tempo. viajamos juntos a cantarolar a três. eu, tu e o presente. quando chegamos a disfarçar as saudades entramos para a cozinha. eu e tu. o presente fica no alpendre a fumar cigarros. espera com a ansiedade necessária. enquanto a conversa corre a fugir ao presente sentimos que o presente passa depressa e que temos de regressar. despedidas. metemo-nos no carro para lisboa. os três. eu, tu e o presente e pensamos que um dia havemos de o convencer a entrar. se deus quiser.

5.6.10







vamos lá. lembrete de férias de verão: fazer jogging duas a três vezes por semana, não ver televisão e ler o máximo que conseguir. livros a sério: começar no homero, varrer os cantos do pound e acabar ligeira com o borges. todos os anos faço isto. no ano passado joguei raquetas na praia duas vezes, a televisão esteve sempre ligada e só li merda. mas como diz o john lennon, a vida acontece quando fazemos planos. foi também ele quem disse eu sou o homem-ovo eu sou a morsa.

4.6.10













não está muito mal. é pena o calor. acho que deviam pôr ventiladores. achas? eu gosto. sabes, eu acho que que o motivo pelo qual não há grandes pensadores na europa do sul é o calor. por exemplo, se me perguntares agora por coisas elementares como a minha morada ou o leit motiv da crítica da razão pura eu escuso-me a responder-te. entropia. pois eu acho que não está a ter suficiente memória do futuro. ainda ontem ouvi um miúdo de uns quatro anos a perguntar ao pai: se as rodas do comboio fossem de borracha apagavam as linhas, não era? percebes? um génio metafórico-criticista. a seu tempo porque a história dos sucessos é a história das amnésias.

3.6.10














olá. boa noite. já escolheram? bem, mais ou menos. nós não percebemos nada destes nomes esquisitos mas vamos experimentar. eu vou comer o bife de tofu e a minha mulher o bife de seitan. para beber? pode ser uma meia garrafa de vinho da casa. muito bem. olhe, olhe venha cá. mudámos de ideias. acha que ainda pode alterar o pedido? diga. afinal vamos trocar. pensámos bem e talvez seja melhor eu comer o seitan e aqui a minha mulher é que vai para o tofu. bom, o pessoal da cozinha não vai gostar muito disto. desculpe lá a maçada e veja o que pode fazer então.

2.6.10









eu disse-te que te ia fazer bem. o sol a bater nas costas dá uma perspectiva diferente das coisas. pois. não sei. isto ainda vai levar o seu tempo. já alguma vez subiste uma escada às escuras e no final pensas que há mais um degrau mas não há e tropeças no nada. sim sei. é isso que sinto. desde que aquilo aconteceu sinto-me a tropeçar no vazio. é tão mais fácil quando está lá qualquer coisa em que se possa pôr a culpa, não é? não tens calor?

1.6.10






é sabido que as casa são construídas debaixo para cima. não é ideia de requintada originalidade mas tem aquele toque moderno das ciências humanas. nada mais errado. a boa casa constrói-se a partir da cozinha. considere a dimensão, a cor, a disposição e os acabamentos da cozinha. atribua valores simbólicos aos electrodomésticos e utensílios e em seguida plasme a projecção do resultado para as restantes divisões. procure a simetria invertida. um único conselho: cozinhe pelo menos duas boas refeições por semana.

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