31.5.10







a desenvoltura arquitectónica do projecto é de uma simplicidade refrescante. forma rectangular simples, com acabamento em cimento cru impermeabilizado com azulejo ou tinta anti-fungos de cor azul razoavelmente vibrante. suave desnível da quota do pavimento nunca superior a 1%. água de reduzida concentração patogénica. a habitabilidade do espaço pode ser melhorada com relva e vegetação de copa frondosa nas áreas adjacentes, espreguiçadeiras, braçadeiras e colchões insufláveis em forma de crocodilo

30.5.10







sinto a falta dele. por mais que custe admitir sinto o peso desta cadeira vazia a esmagar cada um dos meus ossos. nunca tinha vindo aqui sem ele. às vezes nem dávamos conta que éramos dois. ficávamos aqui a ver os bichos e os miúdos a andar de patins. sinto-me mal sem ele. as últimas palavras que ele me disse foram: não fiques assim. vais ver que no final fica tudo bem. se não estiver tudo bem é porque ainda não é o fim. esta última frase deixa-me cheia de esperança.

29.5.10










estás desligada há uns tempos, não é? nem estática, nem som, nem sombra nem nada. não é que estejas de castigo. somos nós que nos queremos privar dele. o castigo. nunca te portaste muito mal mas agora tens andado com más companhias. andas, como dizê-lo? mal frequentada. percebes? da última vez que te tentei dar alguma atenção foi uma enxurrada de mentiras, idiotices e gritaria. fica aí a preencher essa parede vazia da sala que a boa arte está cara e rara.

28.5.10













gosto tanto de pessoas. acho mesmo que o homem é apenas um ser. não é um animal. portanto gosto de seres e de animais. de uns mais do que de outros. por exemplo as vespas. adoro vespas. gosto de vir ao jardim ver as vespas a trabalhar na primavera. não falo das motas italianas. dos bichos. as vespas americanas são outra coisa. na américa a uma vespa chama-se wasp. não gosto das vespas americanas. gostava especialmente de exterminar um certo enxame esbranquiçado que gosta de ferroar pelas costas. é um bicho cobarde, paranóico e pequeno e que nos dias de hoje parece reproduzir-se com relativa facilidade.

27.5.10










substantivo feminino, singular com cinco letras. as pistas que o jogo me dá são um tanto dispersas: cidade, sucesso, carreira, religião, bitoque, automóvel e justiça. hum. eu tenho a certeza que a segunda letra é um "o" e a última é um "e" porque já lá estão suicídio e eclipse. acho que a palavra certa é sorte. mas tenho dúvidas quanto ao "s" porque a terceira pessoa do presente do verbo ter não é tes.

26.5.10

















pois. não foi como dar a volta ao mundo. quase. vejamos. não foi difícil almoçar algures no tibete, beber uma limonada austríaca no meio de livros e mobília com caruncho, jantar de pé num enclave indiano, voltar à pressa para a ginja lisboeta ao final da tarde e acabar o dia a afagar o pêlo a um urso pardo em brooklin.

25.5.10








temos conversado pouco. na verdade já não conversamos. trocamos recados. hoje pelo menos saímos. vamos ver uma exposição de bonecos de cera. estamos aqui e quando eu falo ela nem olha. diz ahã ahã. diz que está preocupada porque perdeu um gancho na bolsa. sinto-me um fantasma. ontem à noite disse-lhe que gostava de ir por um ano para o líbano com uns amigos missionários. ela respondeu-me que os bonecos de cera lhe causam inquietação.

24.5.10











estou? estás-me a ouvir? estou no metro. pouca rede. olha, é para dizer que vou chegar atrasada. ouviste? acho que houve uma coisa qualquer entre a linha vermelha e a linha amarela e então lançaram um alerta laranja e por causa disso os metros estão parados à espera que dêem luz verde para avançar. eu estou a ficar azul. comecem a comer. não esperem por mim. eu sei que a chamada caiu e estou a falar sozinha mas é que tenho de ensaiar melhor o texto.

23.5.10

















vermelho-vermelho. endo-vermelho e exo-vermelho. vermelho-joelho. vermelho-testa e vermelho-mão canhota. vermelho-riso. vermelho-idiota. vermelho-radial e vermelho-radical. vermelho-telhado, vermelho-talhado mais o vermelho-tesão e o vermelho-intenção. encarnado só por me ter encarnado. curiosidades da matéria ou a natureza das coisas.

22.5.10





escolha os frutos firmes de cor brilhante sem partes amolecidas. devem ter no máximo vinte centímetros de comprimento. quando menores são mais tenras e saborosas. preste atenção ao prazo de validade e não compre se houver formação de líquido amarelado no fundo da embalagem, o que indica que o fruto está em falência de frescura. no conteúdo manifesto falo de courgettes. já o conteúdo latente, evidencia escandalosamente a sua variante directa: a abóbora-menina.

19.5.10














gosto da espuma e do marulhar. gosto dos grãos cor de meia de leite. gosto de mascar as franjas bem temperadas da minha toalha. gosto das avionetas que lançam sonhos em prestações suaves. bolas de berlim, chapéus, bandeiras verdes, travessas de madeira com farpas que trazemos para casa alojadas no calcanhar. o som das raquetas em compassos ternários. gosto de descobrir conchas antigas e fósseis de cigarros, noites de amor, pêssegos de roer e porta-contentores.

18.5.10




























as marionetas. se deus quisesse que tivéssemos plena certeza da sua existência não teria mandado cortar as cordas. imagine-se o senhor omni-quase-tudo sentado lá em cima a manipular com destreza milhões e milhões e milhões de braços, pernas, maxilares inferiores e pálpebras. seria uma missão bíblica mas acabava-se de vez com as dúvidas. uma outra coisa é certa: o ponto alto do espectáculo seria ao final de tarde, à hora de ponta na estação de metro do marquês.

17.5.10










a catarina gosta de andorinhas de porcelana e de refrescos de amêndoa e café. por isso a catarina trouxe para lisboa andorinhas de porcelana e refrescos de amêndoa e café. a catarina gosta muito de lisboa. quem gostar de andorinhas e de refrescos deve gostar muito da catarina. lisboa é quente no verão. as pessoas gostam de refrescos e sombras e de andorinhas e da catarina e eu também e já não sei o que fazer com tanto amor.

15.5.10











sou o autor. diz o autor e aproxima-se das pessoas que estão simplesmente a assistir. não me obrigues a falar de ti. diz o autor que não é autor porque não está sozinho nisto e porque também não lhe compete fazer a apresentação do rosto. dar-lhe ruído apenas. esta és tu. diz o co-autor à co-autora. e isto sou eu a tentar não falar sobre ti. mais umas linhas e acaba-se-me o espaço. escusas de olhar para mim assim. não vou falar sobre ti aqui. conclui o co-autor.

14.5.10












importam-se? não façam fila à porta. não esperem. circulem longe daqui. dêem-me espaço. tempo. não tentem falar comigo. não telefonem. não toquem à campainha. façam de conta que me ausentei por uns dias para um seminário de columbofilia no sul do chile. não me incomodem agora. por favor. sim?

13.5.10








este aqui é o interruptor do nosso quarto. é uma peça sinceramente vintage e aquilo a que se pode chamar um verdadeiro interruptor. liga e desliga a luz. fá-lo com requintes de espectáculo multimédia. luz e som. para cima faz tic e para baixo tac. espera-se dois milissegundos e assiste-se ao milagre. temos recebido imensas ofertas por esta peça rara. a última foi de uma senhora que pretendia instalá-lo na base da nuca do marido.

12.5.10









a forma e a contra-forma dá-nos o contorno e o vazio. fenómeno e númeno. as coisas e o espaço entre as coisas. estou a perceber. será possível escrever assim? é que eu não sei escrever nas entrelinhas. claro que sabes. tenta lá descrever o que vês aqui. então, isto é o contorno das coisas que estão na nossa sala. tenta ser menos prosaico. está bem. isto é a solução arquitectónica que nos permite enfiar a nossa sala num espaço de quarenta centímetros quadrados.

11.5.10











já estás a dormir? não, porquê? por nada. acho que não tenho sono. e o que é que queres fazer? miar? não sei. há pouco adormeci por dois minutos e sonhei que o mundo ia acabar esta noite. acordei eriçado. já estás a dormir? não. estou a ouvir-te. e então? olha, o fim do mundo é o fim da humanidade. nós somos gatos. não temos que nos preocupar. vá, dorme. boa noite.

10.5.10








o papa vem a caminho. os conservadores vão formar governo no reino unido. os conservadores vêm a caminho. o papa vem para formar governo. não-localizacionais. localizacionais. semi-localizacionais. são três formas de angústia. escolham uma. os jornais em edição de papel têm a vantagem de poder ser usados na higiene das janelas ou como soalho na gaiola do periquito. assim não. não é que me importe ser considerado um comodista heterodoxo. na verdade revejo-me mais num rapaz de esquerda a quem roubaram a carteira.

9.5.10










obrigado e volte sempre. habituei-me a ouvir isto sempre que vou a sintra. obrigado e volte sempre. voltar sempre significa que não se está. é preciso um estar ausente para se ter um volte sempre. os meus pais adaptaram o adágio: agradecemos que voltes de vez em quando. eu agradeço a atenção. sempre soa-me a todos-os-dias ou no pior dos cenários convoca-me para o panteão da infinitude. nenhum dos dois me dá jeito.

8.5.10











quem é que falou em desvios felizes? reformulando, convém subtrair-lhe a qualidade. desvios. ponto. desvio, s.m. 1. mudança de direcção 2. volta; sinuosidade; recanto; esconderijo. 3. erro. 4. sumiço; descaminho. a adjectivação só adorna o desvio. nada melhor que o infinitivo para produzir efeitos visíveis. desviar o desvio. e a propósito, os gatos são muito ágeis.

5.5.10











vem ver isto. voltaste a pintar flores? não. olha com atenção e sente o cheiro. não me lembra nada. estas não foram pintadas. nasceram aqui de ontem para hoje. talvez tenha sido uma semente na água dos pinceis. sim talvez. cheiram como as mimosas do quintal da avó. e agora o que lhes vais fazer? vou deixá-las aqui à janela e pedir-te que m'as regues.

3.5.10










as estátuas são a expressão superior de uma vendetta. erga uma estátua que fique à mercê do sol do meio dia, à mão de um marcador que enalteça a pilosidade facial e alinhada com a rota de relaxamento cloacal pombalina. nada disto desprestigia o visado. não. é interactivo e dinâmico. como todas as homenagens o devem ser.

2.5.10










ontem fiz vinte e seis anos. sempre que eu faço anos o mundo inteiro faz uma festa muito bonita. vinte e seis anos e outras tantas revoluções. nunca sei se a festa onde estou é a minha ou a dos outros. também não sei bem se estarei eu em festa e o resto do mundo em revolta ou ao contrário. não sei.

1.5.10









patas de elefante em flores de maio. mil elefantes às flores e as patas de maio no ar. hoje todos cantam. cá andamos com flores nas patas e com as patas erguidas. maio grita as patas e as flores. eu penso na falta de patas e nas dores das flores. este ano as flores estão mais vermelhas, as patas andam inúteis e as canções passeiam de trombas.

Arquivo