30.4.10









a dona maria demora-se sempre muito. os dias são enormes. troquei o banco do jardim por salas de espera. aos ointenta e dois anos comecei a sentir falta de um desafio novo. acção, sabes? agora vejo a vida realmente a acontecer. vida a sério. é verdade que não pagam muito bem. não fazes ideia há quanto tempo não compro uma camisa nova.

28.4.10










agora quando não chove aperfeiçoa-se o corpo. ir sozinha à praia não dá muito que fazer. de entre aquilo que é suposto as pessoas normais fazerem na praia num dia de abril, sinjo-me a um único compasso quaternário: alisar a tolha, amarrotar a areia. alisar a areia e amarrotar a saia.

27.4.10









o a é para isto. o b para aquilo. o c é para não sei quê. o d é para mim. já passou o meu número. é no guichet ao lado. leve o impresso cor de rosa e anexe outro que fique bonito. verde? incorrecto. preencha tudo e venha cá para a semana. não se esqueça de me trazer o modelo estival. perdi a minha senha. estou com cefaleia e pés inchados. deve ser retenção na fonte.

25.4.10











quando acordaram na manhã seguinte prestaram atenção à cidade pela janela. eles sabiam que o tempo dos escamoteadores, dos charlatães, dos fazedores de habilidades, dos prestímanos e dos carcereiros tinha passado.

20.4.10











não foi difícil convencerem-me. estavam todos espalhados pelos passeios da cidade a chorar as suas vidas. imploravam adopção. juravam fidelidade e histórias longas para contar. limpei-lhes a feridas e rebaptizei-as. só não lhes limpei a memória. se pensarmos bem devem viver umas largas dezenas de pessoas na nossa sala. pedi-lhes que não nos revelassem nada.

19.4.10












jorge tenho uma coisa para te mostrar. o que é? mostra. desenhei-te naquele dia. lembras-te? foi no primeiro dia que te vi aqui. gostas? porqué qu'eu sou azul? o azul é a cor mais quieta de todas. posso desenhar-te também? de que cor me desenharias? verde. porquê? porque o vermelho é prá menina qu'eu gosto.

18.4.10

















nuages. enquanto o coro de gritos não acalmava e os aviões se espreguiçavam lentamente pelos hangares. o meu vento de desafeição era outro. se não te despachares já não vês o arco íris. vês? a única cor que realmente me interessa é o cinzento. as tardes de domingo são proteladamente cinzentas. e as zebras quando correm não são azuis.

17.4.10

















deixem os cegos guiar aqueles que conseguindo ver não conseguem sentir ou o fim de semana com a casa cheia de guitarras. criptogramas e castelos microscópicos. seguimos com o bradford o lastro da era estranha e o som do homem que carrega aos ombros o peso do mundo.

16.4.10









o que propus aos dois grupos foi que cada um se concebesse como uma espécie de pássaro e me explicasse o que é que o impedia de levantar voo. os indivíduos continuaram pousados sobres as suas próprias questões. ambos os grupos entrecruzaram-se. o da direita puxou de um cigarro e o da esquerda afagou-me a barba. de dez elementos apenas um se demonstrou razoavelmente participativo.

15.4.10







hellbender. o origem do nome não é de todo consensual. o departamento de conservação do missouri advoga que o nome terá origem na aparência duvidosa da criatura que evoca um qualquer miserável regressado dos baixios do inferno. no entanto não passa de uma inofensiva salamandra aquática. identifica-se facilmente através das suas características vocalizações em fá menor saturadas de reverb.

14.4.10











uma laçada para a direita. duas para a esquerda. dá o volta ao lago e mergulha. que ponto será este? disseram-me que se chamava ponto de arroz. ia ser uma almofada mas vai ser um tapete. gosto da ideia de andar descalça sobre um tapete de arroz.

13.4.10










agora tenho mesmo que te desenhar. sim. eu quero. gosto tanto dos teus desenhos. há tanto tempo que não vinha cá. é bom. estás tão bonita. fica-te bem o sol na pele. a tua cara é tão difícil de desenhar. fico feliz por terem vindo. eu também. comemos tortas pelo caminho. já está? sim. já está.

12.4.10






onze de abril de dois mil e dez. praia desconhecida, algures a sul daqui. caro amigo, fixámo-nos no fundo da ravina à sombra da montanha e daquele convento. a erva da montanha está verde forte. aqui e acolá há monólitos vestidos de preto a surgir das águas. os nativos são afáveis e os caranguejos estranhamente conversadores. escrevo-te com mais tempo para a semana. dos teus amigos.

11.4.10









há alturas em que me lembro da frase o jantar está na mesa. palavra. apanhava-me sempre na melhor parte da brincadeira e a mãe tinha de a repetir uma dúzia de vezes até que eu demonstrasse algum interesse. de há uns anos para cá passei a ser eu o convocador. as saudades que tenho de ouvir a frase. e quando estou a cortar cebolas não são saudades. é mágoa profunda.

10.4.10











a minha mãe mexe-se muito. mexe-se demais. ficamos as duas em silêncio. as duas e os gatos. os gatos a dormir. a minha mãe a mexer-se a fingir que está quieta. o gatos acordam e saltam para o colo da minha mãe que aproveita para se mexer a mexer nos gatos.

9.4.10










se fossemos como ele, já sabes. retira-se uma haste ao resto. duas semanas com os pés na água. ganha-se coragem e enterra-se. alguns meses num quarto demasiado poluído para crescer para onde quer que fosse. mudar de colina. suspender à janela a ver o mundo do alto. ramos, folhas, rebentos, muitos. flores.

8.4.10
























os pés são melhores diagnosticantes de carácter do que os olhos, a voz, a profissão ou o número de vezes que alguém foi suturado. um pé descalço é um compêndio de psicologia especulativa. diz-se que o dedo grande é o mais revelador. quanto mais imponente o maioral mais admirável o seu dono. a saber: a massa corporal do meu dedão é equivalente à soma dos outros quatro. isto só falando do pé esquerdo.

7.4.10










da última vez que lá entrei havia vestígios de cola, tinta e arames. há cartas por abrir e fotografias no aparador. de vez em quando vai lá uma senhora com os dentes feios e os olhos bonitos. dizem que é a dona. ela fala como as crianças falam e como os poetas tentam escrevem. agora não digo mais nada. um dia conto-vos uma estória.

6.4.10









estão cheias de lagartixas e borboletas e de tudo o que cresce e mexe na primavera. continuam cinzentas as telhas como as chaminés motóricas que disparam a luz do sol do meio dia em todas as direcções. lá atrás o castelo também continua cinzento. há dias em que o rio também. quando era pequeno não me cabia inteiro na concha das mãos. agora não passa de dois dedinhos.

5.4.10










aquele lugar é um shoegaze com cheiro a cerejas. abdicaram da pose. vinham com os olhos cheios de ideias. falaram torrencialmente daquelas terras como se lhes pertencessem. na verdade eles são donos daquilo tudo. férias de verão que não têm fim. conversas ao jantar. inventaram profissões e uma casa para brincar. um dia destes ainda se mudam para lá.

4.4.10












se disparar deste ângulo contra o vidro tenho a paisagem de fora. a de dentro. a de dentro pelas costas e a de fora para dentro invertida. conseguir o reflexo do reflexo do reflexo. um burro a levar a serra às costas a deslizar num campo de velhinhas sentadas de pernas para o ar.

2.4.10

























tens o teu bilhete? não me chateies agora. mostra-mo. o meu é corderosa. pára. quantas estações é que achas que faltam? eu digo 21. não 19. chega-te um bocado mais para aí. esse espaço pertence-me. a professora adormeceu. viste aquilo? estou com calor. eu acho que estou a ficar mal disposta.

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